sábado, 6 de setembro de 2014

Da morte. Odes mínimas - Hilda Hilst

Como já era de se esperar, o blog ficou abandonado. Tenho uma pilha considerável de livros que queria resenhar. Outra pilha maior ainda, a da vergonha, está gritando "ME LEIA!, ME LEIA!". Ontem, na volta do cinema, comprei dois livros por impulso: um da Hilda Hilst e outro da Wladyslawa. Antes que eles acabassem em alguma pilha, me grudei na Hilda e li em uma sentada. Por esse mesmo motivo, resolvi escrever sobre o livro, ainda que brevíssimamente, agora mesmo. Tenho um zilhão de coisas pra fazer, mas achei digno procrastinar resenhando Hilda Hilst.

Minha edição, da Editora Globo, é dividida em três partes: "Aquarelas", "Da Morte. Odes mínimas" e "Tempo - Morte". A primeira parte, "Aquarelas", é constituída de poemas curtos e ilustrado com aquarelas da própria autora. Ou seriam os poemas que ilustram as aquarelas? Sem ter certeza da interdependência dessas duas linguagens (escrita e visual) me permito dizer que poderiam ser lidos separadamente. Porém, penso que a junção dos dois potencializa a plasticidade de ambos. As cores vibrantes e as imagens que parecem ter sido retiradas de um sonho lembram as vanguardas futuristas e surrealistas. Os poemas, de forma semelhante, nos conduzem a uma espécie de devaneio, a um sonho inexplicável do qual não temos vontade de acordar:

Um peixe raro de asas
As águas altas
Um aguado de malva
Sonhando o Nada.

Em um primeiro momento, pensei que essa primeira parte não tivesse muito a ver com a temática do livro - a morte. Em uma segunda leitura, observei que os poemas tem um tom nostálgico, se remetem a lembranças distantes. O tom surreal dessa primeira parte me fez pensar em um estágio anterior à morte, como um coma ou um estado de sub-consciência. Com a leitura das outras duas partes, vi que nesses poemas a morte é algo que a vida integra. A temática da morte como finitude, como uma presença angustiante e pavorosa não existe aqui.



A segunda e terceira parte contêm poemas que se dirigem à morte, raramente usando a terceira pessoa. É como se a morte estivesse entre nós, é apresentada como algo trivial, bem diferente da noção de morte que tradicionalmente temos em nosso imaginário:

XXIV

Te sei. Em vida
Provei teu gosto. Perda, partidas
Memória, pó

Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
Em vida, morte, te sei.


XXVI

Durante o dia constrói
Seu muro de girassóis.
(Sei que pretende disfarce
E fantasia.)
Durante a noite,
Fria de águas
Molhada de rosas negras
Me espia.
Que queres, morte,
Vestida de flor e fonte? 

- Olhar a vida.


Além da leitura da Hilda, eu também indico uma dissertação sobre a escritora (aqui). Dificilmente eu indicaria para um algum leitor de poesia uma dissertação de mestrado, ainda mais para pessoas que não estão diretamente involvidas com o mundo acadêmico das Letras. Entretanto, esse trabalho vale muito a pena, a metalinguagem que a Camila usa pra falar da poeta é impressionante. Espero sinceramente que um dia ela consiga publicar em livro.

No mais, boa leitura de Hilda Hilst ;)

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A infância de Jesus - J. M. Coetzee

Não, esse não é o melhor livro do Coetzee. Não, não é tão bom quanto Foe. Não, não chega nem aos pés de Waiting for the Barabarians. Sim, Elizabeth Costello é bem melhor. Só que ainda assim é um baita romance, fim. Acho que isso é até comum entre grandes escritores (eu ia dizer entre escritores fodas, mas parece que não é apropriado).

Ano passado, Coetzee esteve no Brasil para divulgar este seu último trabalho e passou por Porto Alegre. Rolou uma conferência, e, na sequência, uma sessão de autógrafos. Aí foi uma problemão para essa que vos escreve, já que todos os livros que eu havia lido do autor tinham sido em versão e-book. E o que é pior, pirateados. De última hora, comprei no próprio local da conferência o novo A infância de Jesus. Sim, peguei autógrafo. Eu acho essa história meio complicada, já que se transforma o escritor em uma celebridade, fico com vergonha e nunca sei o que dizer, mas azar, eu aguento. Debord mandou um beijo.


Sobre o enredo, A infância de Jesus é um romance distópico. Um homem e uma criança chegam até a cidade de Novilla, após passarem algum tempo acampados em Belstar. Eles chegaram ali de navio, mas não sabem de onde vieram, pois tiveram suas memórias apagadas. Pela mesma razão, parecem ter perdido sua noção de identidade. Precisam aprender uma nova língua até, no caso, o espanhol.

Novilla dá a impressão de fazer parte de uma sociedade comunista. Todos têm direito à moradia, à alimentação, à educação. No entanto, não parecem ter o direito de pensar, questionar. E nem querem. Tal habilidade parece ter sido desativada juntamente com a memória. Com a exceção de Simón e David (nomes que receberam ao chegar à nova terra), que eventualmente indagam contradições à sua volta.

Apesar disso, Simón não é necessariamente um revolucionário, vez outra faz sugestões para mudar determinadas circunstâncias, mas dificilmente elas são bem recebidas. Por exemplo, ele sugere que usem um guindaste em seu trabalho no porto, ao invés de carregarem todos os sacos de trigo nas costas:

     "Dava, sim", o capataz concorda. "Mas para quê? Para que fazer as coisas em um décimo do tempo? Nem tem nenhuma emergência acontecendo, nenhuma falta de nada, por exemplo."
      Para quê, de fato? Parece uma pergunta genuína, não um tapa na cara. "Para a gente usar o esforço em alguma outra coisa melhor", ele sugere.
     "Melhor que o quê? Melhor que fornecer pão para nossos irmãos?"


Aina assim, Simón se conforma com a vida que tem, dá valor a essa chance que lhes foi concedida:

"Não sei o que dizer. Estamos aqui pela mesma razão que todo mundo está. Nos deram uma chance de viver e nós aceitamos essa chance. É uma grande coisa, viver. É a coisa mais importante de todas."

Simón também tem uma missão: encontrar a mãe de David, que estava sozinho no navio e perdeu uma carta que explicaria quem ele era e onde estava a sua mãe. Após uma breve investigação, Simón decide que a mãe de David é Elena, afirma que ao olhar para mãe de David, saberia que era ela, e é assim que procede. Não é esclarecido para o leitor se Elena realmente é a mãe do menino, mas isso não interessa, o que importa é que Simón cumpriu sua missão e não sabe muito bem o que fazer. Por sentir falta da criança, acaba por permanecer próximo, auxiliando na complexa tarefa de educar David.

O desfecho da história é interessante, mas o que mais me atraiu no livro foram as dúvidas levantadas pelo narrador nas entrelinhas. Refletir sobre o mundo em que vivem não parece ser o forte dos personagens ao redor de Simón. Ao se juntar a um grupo de filosofia, ávido por gastar seu tempo livre pensando, o protagonista se frustra ao descobrir que tudo que discutem é a natureza de mesas e cadeiras.

A tal igualdade entre os habitantes também é anormal. Enquanto alguns vivem em grandes condomínios constituídos por pequenos apartamentos, outros vivem em verdadeiros resorts de luxo. Em princípio, as pessoas são alocadas em residências aleatórias, se um está em uma casa luxuosa é por pura sorte. No entanto, a impressão que temos é que esse seria um resquício de outra realidade, na qual a desigualidade era a regra.

A grande diferença que vejo nessa distopia, é como a aparência de igualdade, os direitos de fachada e a ilusão de liberdade são de fato muito piores que uma ditadura declarada, pois não é possível depreender exatamente quais são os limites e muito menos se sabe por que lutar, tudo é muito subjetivo. Ainda enquanto distopia, o romance nos faz avaliar nossa condição de ocidentais do século XXI. Será que somos realmente questionadores como Simón e David ou será que somos mesmo conformados com as circunstâncias em que vivemos?

Boa leitura!

Edição:

COETZEE, J. M. A infância de Jesus. Tradução José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Stolarskais: haicais de André Stolarski

Arrisco a dizer que esse tenha sido um dos melhores livros que li da safra de 2013. A questão é que eu não li praticamente nada, de qualquer forma, eu precisava dizer isso para mostrar quanto os haicais de Stolarski, ou melhor, os Stolarskais, são sensacionais. É realmente uma pena que o autor não possa mais nos aprazer com seus poemas, uma vez que faleceu prematuramente em agosto do ano passado.



Nunca compreendi muito bem o conceito de haicai. O que sempre tive na memória era algo como "poema japonês curto que parece simples mas tem alguma complicação". O prefácio de Noemi Jaffe problematiza o termo, trazendo várias regras que envolvem a sua criação:

Lembro de algumas regras sobre a prática do haicai que, no Japão, fazem parte de uma série de rituais sagrados: ele deve ter dezessete sílabas divididas em três versos; não pode se referir ao "eu" e nem usar essa palavra; deve ter humor, silêncio, deve falar da natureza e conter o que Alice [Alice Ruiz] traduziu como "grata aceitação", que nada tem a ver com o espírito de Poliana, Alice dava o exemplo de um haicai de Bashô, o grande mestre haicaísta do século XVII Sem óleo para a lâmpada/ Deito-me cedo esta noite./ Na janela, a lua.

Os haicais de André, salvo raras exceções, parecem dar conta de todos esses complexos princípios do haicai:

Ser como o acrílico:
Transparente de si
Sujo de tudo

Jogadores de sinuca
Se aposentavam
Em Caçapava

Quer perder peso?
Pergunte-me e como-o
Sorriu o canibal

Madame sem tempo no salão:
- Minhas unhas
Que se lixem



Pastou a vida inteira
Pra terminar
Num bom açougue

O pretérito
Um galã: o partido
Mais-que-perfeito

Acredito
E desconfio de tudo
Religiosamente

Aqueles poemas que talvez não se enquadrem no concepção tradicional de haicai, são, ainda assim, pequenas pérolas de poesia.Por fim, cito aquele que provavelmente será uma das epígrafes da minha futura - e ainda distante - dissertação de mestrado:

Deixe de frescura
Reescreva
Toda a literatura

Boa parte dos haicais (ou talvez até todos, não conferi) estão na página do Instagram do poeta: http://instagram.com/andrestolarski. Quem prefere o livro de papel, vale a pena, pois essa edição da Cosac Naify é linda de morrer. A capa é um envelope que protege as páginas do livro, confeccionadas em material transparente. Apesar de os poemas estarem disponíveis na internet, achei um excelente custo X benefício ter esse charmosíssimo de livrinho na minha estante.

STOLARSKI, André. Stolarskais: haicais de André Stolarski. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A maçã envenenada - Michel Laub

Não há frase na agenda sobre essa sensação quase absoluta, que às vezes me assustava porque é só estender a liberdade e de um instante para outro você não tem mais passado, nem sente falta de nada porque é como se nada tivesse acontecido, ou só as coisas que você escolheu, as lembranças boas e inofensivas, e nada do que você disse ou fez a uma pessoa tem consequência porque nunca mais precisará encontrá-la, nem pensar nela, nem imaginar e confrontar o que foi feito dela em outro tempo e outro continente numa vida que às vezes nem parece ter sido a sua.

Não sabia, mas esse livro é o segundo volume de uma trilogia que trata das relações e dos efeitos individuais que grandes tragédias podem trazer. O primeiro título da série se chama Diário da queda, que, infelizmente, eu ainda não li.


Os eventos que giram em torno do personagem são um show da banda Nirvana, que aconteceu em São Paulo em 1993 e o suicídio do vocalista no ano seguinte. Como contraponto, está a história de Immaculée Ilibagiza, sobrevivente da guerra em Ruanda. De um lado, está o astro do rock com fama e dinheiro. De outro, está a a refugiada que fica 90 dias em um banheiro com outras setes mulheres, praticamente sem alimento. O primeiro dá cabo a sua vida, a segunda luta ferrenhamente pela sobrevivência. Enquanto isso, o protagonista chega a cogitar o próprio suicídio.

Esse narrador-personagem é um estudante de classe média que se vê obrigado a largar projetos promissores com sua banda e a interromper a faculdade para prestar o serviço militar obrigatório. São várias experiências conjuntas: frustração com o curso de Direito, primeira (e problemática) namorada e a revolta com a falta de sentido das atividades do quartel.


Já na terceira página do livro, o autor menciona a "umidade e a sujeira do verão em Porto Alegre". Curiosamente, li o livro em uma das piores ondas de calor desse verão de Forno Alegre...

A narrativa se dá em flashback, em uma espécie de análise ou balanço que o personagem faz daquele período de sua vida. Detalhes significativos, como por exemplo, se ele conseguiu chegar até o show do Nirvana ou não, somente são revelados no final do livro.

Ainda que a história seja simples, A maçã envenenada é um excelente romance. Tem um personagem intimista que procura seu lugar no mundo, como se naquele período conturbado de sua vida estivesse sua identidade: "e é por isso que em quarenta anos de vida analisada a única passagem que permanece numa zona de sombras é o período próximo do show do Nirvana.".

Boa leitura!

LAUB, Michel. A maçã envenenada. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Canções Mexicanas - Gonçalo M. Tavares

"Na quarta vez o padre suicidou-se de outra forma, recomeçou o muchacho, completamente diferente na quarta vez."

Essa epígrafe mostra exatamente o que livro é: a cara do México e a cara do Gonçalo M. Tavares.

É difícil ser imparcial quando o autor em questão é disparado um dos meus escritores preferidos. Como não poderia ser diferente, Canções mexicanas é mais uma obra desafiadora e fascinante do escritor português. A editora Casa da Palavra optou por colocar na ficha catalográfica a classificação "contos". Talvez até sejam, e também não é meu objetivo aqui abrir uma discussão sobre o gênero. O que eu quero ressaltar é que o autor optou por chamar os textos desse livro de canções. Vi uma entrevista antes de ler o livro na qual o autor comenta o assunto, logo, durante a leitura, pensava a todo tempo sobre o conceito de canção como gênero literário. Recomendo.



As canções giram em torno de um turista que chega à Cidade do Méxio e tem como guia um "bambino". O bambino é um nativo que, depois de prover seu cliente com algumas doses de Mezcal, o  leva para conhecer os contrastes desse país, onde ter a máquina fotográfica roubada vale a pena, pois existe a mais bela catedral na qual o Senhor do Veneno nos protege das invejas.

A obra nos dá uma visão peculiar do país, um olhar europeu que se espanta com a efervescência do lugar e que não consegue compreender muito bem a lógica mexicana:

Preciso de urinar, diz o bambino, levanto o braço, paro, sou empurrado, para um lado, depois para outro, ninguém pára, o bambino pergunta-me se estou a gostar do México, eu digo que sim - então corre, diz-me ele, e sim, começo a correr, não entendo porquê - mas sou um menino obediente - então corre diz ele, corre, não pares, corre!

O turista então passa a pensar a história do México para compreendê-lo - afinal é assim que sempre foi em seu mundo, quando não se entende uma cultura, busca-se seu passado, para assim desvendá-la. Obtém respostas, nenhuma definitiva:

Quanto pesa a história do México? - menos de 100 gramas, digo. Não, emendo: 500 gramas, talvez. É a pirâmide de los Nichos, uma miniatura. Tem um nicho por cada dia, um buraco onde podes pôr um presente, 365 como o dias; tens um ano (dos antigos) na mão amigo, estás contente? digo que sim e pago 100 pesos.

(...)

De qualquer maneira aqui estou eu, no meio da Cidade do México, a tentar encontrar a casa de Frida Kahlo, depois de estar uma manhã a olhar para os murais de Rivera: como concentrar a história em pessoas, como se a história fosse um somatório de biografias, a história de um país como o somatório de cinco milhões de vidas, ou talvez apenas como o somatório das vidas realmente relevantes - os que matam, os que torturam, os que salvam, os que fazem grandes discursos, os que têm pontaria - enfim, eis a história do México, em parte isto: o somatório da biografia de, valá, 200, 500 homens? Quantos, na verdade? É difícil dizer.

Conclui-se, mais uma vez, que não é possível compreender toda a cultura de um povo com critérios de outra. O turista não foi capaz de perceber a lógica do México, ainda que o bambino e outros personagens tenham avisado-o tantas vezes: a lógica está no movimento, no dinamismo. Quem não acompanha toda essa agitação corre o risco de sucumbir, eis a grande lição do povo mexicano para o turista e para nós.

Edição:

TAVARES, Gonçalo M. Canções mexicanas. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2013.


sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Coleção Filosofinhos/Les Petits Philosophes

Comprei dois livros dessa coleção fofíssima: Jean-Jacques Rousseau e Sartre e Simone. A proposta da Tomo Editorial é introduzir a biografia de pensadores e fundamentos de filosofia para crianças. Além disso, as edições são bilíngues, em português e francês.



Teoricamente, os livros são para meus afilhados, mas antes de dar para eles, fiz o "controle de qualidade". São ótimos! Confiram o trecho no qual o menino Rousseau se questiona acerca da propriedade:

Se os frutos são de todos
e a terra é de ninguém,
faz nascer desigualdade
quem acumula o que já tem.

Si les fruits sont à tout le monde
mais que la terre n'est à aucun de nous
l'inégalité pointe le
bout de son nez
quand quelqu'un
accumule et veut tout.

Mais importante do que mostrar para as crianças quem foram os filósofos, é ensinar certas ideias e suas aplicabilidades em nossas vidas. Nesse sentido, a série acertou em cheio.


Para educadores, a editora disponibilizou em seu site um roteiro com atividades envolvendo os livros. Olhando por cima, achei as tarefas bacanas, mas penso que elas podem ser contextualizadas em um projeto educacional maior.

Apenas uma ressalva. A única "filosofinha" da série é a Simone de Beauvoir, e ela divide o livro com outro pensador. Na minha opinião, dá a ideia de que ela é secundária e só está ali porque dividiu sua vida com Sartre. Com certeza essa não foi a intenção do autor, contudo, passou essa impressão. Curioso que as ideias que Simone difundiu pregavam justamente o oposto disso. Custava ter publicado nove títulos ao invés de oito?

Boa leitura, para os pequeninhos e para os grandinhos!

Edições:

BORGES, Cauê. Jean-Jacques Rousseau. Ilustrado por Francisco Juska Filho. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013.

REUILLARD, Pascal. Sartre e Simone. Ilustrado por Francisco Juska Filho. Porto Alegre: Tomo Editorial, 2013.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

E nós cobrimos seus olhos: uma novela e outros contos - Alaa Al Aswany

"Eu, autor desta novela, declaro que não estou de acordo com as opiniões do protagonista Issam Abulâti e que elas representam o oposto do que penso do Egito e dos egípcios. Gostaria de afirmar que o protagonista é demente e psicologicamente instável. Eu escrevo este repúdio a pedido da comissão de leitura da Organização Geral Egípcia do Livro."

O livro me fisgou pela citação acima, impressa na capa, cobrindo, inclusive, parte do título. Inicialmente, pensei que fosse algum recurso metalinguístico do escritor para chamar a atenção do leitor. Ainda que o editor tenha tido essa sacada, a mensagem foi realmente escrita para a chamada comissão de leitura da OGEL - Organização Geral Egípcia do Livro, como o autor explica na introdução do livro.


Após receber algumas críticas positivas de seus amigos, Aswany tentou publicar o livro através da OGEL, mas ficou surpreso com a resposta que obteve: era impossível para a Organização publicar o livro porque "insultava o Egito". Depois de muita discussão, o funcionário aceitou cogitar a publicar seu livro depois que ele escrevesse uma nota de repúdio ao personagem principal da novela. Apesar disso, o livro nunca foi aprovado pela comissão, fortemente envolvida em burocracias e apadrinhamentos políticos.

Além da peculiaridade da nota existente na capa, comprei o livro porque nunca havia lido um trabalho desse autor, nem de literatura egípcia. De acordo com a orelha, o escritor tem um best-seller em língua árabe chamado O Edifício Yacubian, já adaptado para o cinema e também publicado no Brasil pela Companhia das Letras.

Como o próprio título já diz, trata-se de uma novela e de contos, mais especificamente, dezesseis narrativas curtas. A novela gira em torno da vida de Issam Abudlâti, que, diferente de seus conterrâneos, detesta ser egípcio e repudia qualquer opinião ufanista sobre seu povo e seu país. Na mesma direção, Issam se apaixona pelo modo de vida ocidental e passa a se comportar da mesma forma: rompe com a religião, passa a frequentar exposições de artistas europeus, compra revistas francesas e americanas, compra roupas novas e elegantes e se envolve com uma alemã (ainda que esse fato possa ser apenas um delírio). O ocidente é uma espécie de oásis em seu mundo, deslumbra-se com suas possibilidades:

O espírito do "Ocidente" é que me cativa nas fotos. Isso mesmo. O espírito ocidental nos rodeia, nós o vemos em tudo, mas raras vezes o destituímos de sua aparência. Tudo o que temos de elegante na nossa vida é necessariamente ocidental! Quer exemplos? O jaleco branco do médico, os aparelhos científicos e até mesmo os domésticos, a gravata de um ator de cinema, o carro luxuoso, moderno, tudo. Tudo o que admiramos pertence a eles. Quando meu pensamento chegou a esse nível de clareza, fiquei com medo de esquecer o que havia compreendido ou que fosse coberto por outras ideias menos importantes, por isso peguei um caderno na minha gaveta e escrevi na primeira página: "Agora entendo que fui encarcerado pelo espírito do Ocidente, e na mesma medida em que me certifico de nossa futilidade, vejo o espírito deles transbordando possibilidades maravilhosas".



Issam passa a visitar os pontos turísticos da cidade do Cairo, pois acredita que ali residia "a beleza". Fingia apreciar as pirâmides e o Museu Nacional, quando na verdade estava a contemplar as pessoas que frequentam esses lugares. Com o mesmo propósito, Abudlâti retira os quadros de autoria de seu pai, artista plástico sem expressividade, e coloca pôsteres com fotografias das revistas que havia comprado. Esse gesto vai além de se deixar invadir pelo consumismo ocidental, ele também rompe definitivamente com a figura paterna e com toda a cultura árabe a que ela remete.

Assim como a novela, os contos de Aswany criticam o sectarismo árabe, mas de maneira diferente a que estamos acostumados a ver. Aqui o mundo ocidental não se mostra como um ideal, pelo contrário, é a obsessão por ele que leva o protagonista a seu fim trágico. Entre os contos, destaque para Ao senhor responsável pelo ar condicionado da sala, no qual a Guerra do Seis dias sob a perspectiva de uma cidade de Jenîn. O conto atrai não só pela abordagem do tema, mas também por sua estrutura e por seu narrador irônico.

Além disso, o escritor egípcio trata de questões universais delicadas, como a velhice, de forma chocante:

Quando se tem oitenta anos, ninguém mais o ama, porque os bons sentimentos também envelhecem, murcham e morrem, e porque viver mais do que o esperado é uma afronta aos outros. Com certeza, minha mãe e meu tio Abbas amavam muito minha avó há vinte ou trinta anos e, naquela época, quando pensavam no dia em que ela pudesse lhe faltar, ficavam muito tristes, mas agora tal dia demorava tanto a chegar que tinham a sensação de que minha avó era eterna e jamais seria removida pela morte.

Fiquei impressionada como o autor levanta tantas questões e consegue abordá-las de maneira tão multifacetada em narrativas curtas. E nós cobrimos seus olhos me fez descobrir Alaa Al Aswany. Espero conseguir ler outras obras do autor em breve.

Edição:

ASWANY, Alaa, Al. E nós cobrimos seus olhos: uma novela e outros contos. Tradução: Safa A-C Jubran. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.